"Na última tarde em que estive vivo, a minha mulher, a Maria e o Francisco foram ver-me. Durante toda a doença, o Simão nunca me quis visitar. Era domingo. Eu estava apartado dos outros doentes, porque ia morrer. Tentava respirar e a minha respiração era um zumbido grosso, rouco, que enchia o quarto. Ao fundo da cama, a minha mulher chorava, engasgada pelas lágrimas, pelo rosto contorcido e pela dor: o sofrimento. Sem escolher as palavras, dizia-as dentro de uivos estendidos, esticados, longos, interrompidos apenas por tomadas sôfregas de fôlego. Eram palavras que ardiam dentro do seu corpo emagrecido, vestido com um casaco de malha, uma saia estimada, sapatos engraxados:
- Ai meu rico homem, meu amigo que és o meu maior amigo e eu fico sem ti meu rico homem meu companheiro, meu amigo tão grande tão grande.
A Maria chorava e tentava abraçar a mãe, consolá-la, porque, no peito, sentiam as duas o mesmo vazio definitivo e terrível que eu também teria sentido se algum dia tivesse perdido uma delas. O Francisco olhava pela janela. Tentava não ver. Tentava não saber aquilo que sabia. Tentava ser um homem. Depois, sério, aproximou-se de mim. No tempo eterno e concreto, pousou-me festas no rosto e pousou a mão sobre a minha mão. Na mesinha-de-cabeceira, sobre o tampo de ferro cinzento, descobriu um copo de água e um pau que tinha um pedaço de algodão na ponta. Molhou o algodão na água e assentou-mo na boca seca e aberta. Mordi-o com toda a força que tinha, e o Francisco surpreendeu-se por sentir pela última vez a minha força. Retirou o algodão. Olhou-me, e chorou também, porque já não conseguia aguentar. A Maria abraçou-o e tratou-o como quando era pequeno:
- Não tenhas medo, menino, que a gente não te vai deixar sozinho. A gente vai tratar de ti.
Toda a minha força. Usei toda a minha força e só consegui fazer um som horrível de moribundo. Queria dizer ao Francisco e à Maria que eu também não os deixaria sozinhos, queria dizer-lhes que eu era o maior amigo que tinham na vida, que nunca os deixaria sozinhos e que nunca deixaria de ser o seu pai, e de tratar deles, e de protegê-los. Em vez disso, usei toda a minha força e só consegui fazer um som horrível de moribundo. O som de uma voz que já não conseguia falar, o som de uma voz que usando toda a sua força, só conseguia fazer um barulho rouco com a garganta, um som horrível, um som de moribundo. Olharam para mim, e choraram mais, e sentiram no peito todo o vazio terrível, negro: profundo profundo: que eu também teria sentido se alguma vez tivesse perdido um deles."
- Ai meu rico homem, meu amigo que és o meu maior amigo e eu fico sem ti meu rico homem meu companheiro, meu amigo tão grande tão grande.
A Maria chorava e tentava abraçar a mãe, consolá-la, porque, no peito, sentiam as duas o mesmo vazio definitivo e terrível que eu também teria sentido se algum dia tivesse perdido uma delas. O Francisco olhava pela janela. Tentava não ver. Tentava não saber aquilo que sabia. Tentava ser um homem. Depois, sério, aproximou-se de mim. No tempo eterno e concreto, pousou-me festas no rosto e pousou a mão sobre a minha mão. Na mesinha-de-cabeceira, sobre o tampo de ferro cinzento, descobriu um copo de água e um pau que tinha um pedaço de algodão na ponta. Molhou o algodão na água e assentou-mo na boca seca e aberta. Mordi-o com toda a força que tinha, e o Francisco surpreendeu-se por sentir pela última vez a minha força. Retirou o algodão. Olhou-me, e chorou também, porque já não conseguia aguentar. A Maria abraçou-o e tratou-o como quando era pequeno:
- Não tenhas medo, menino, que a gente não te vai deixar sozinho. A gente vai tratar de ti.
Toda a minha força. Usei toda a minha força e só consegui fazer um som horrível de moribundo. Queria dizer ao Francisco e à Maria que eu também não os deixaria sozinhos, queria dizer-lhes que eu era o maior amigo que tinham na vida, que nunca os deixaria sozinhos e que nunca deixaria de ser o seu pai, e de tratar deles, e de protegê-los. Em vez disso, usei toda a minha força e só consegui fazer um som horrível de moribundo. O som de uma voz que já não conseguia falar, o som de uma voz que usando toda a sua força, só conseguia fazer um barulho rouco com a garganta, um som horrível, um som de moribundo. Olharam para mim, e choraram mais, e sentiram no peito todo o vazio terrível, negro: profundo profundo: que eu também teria sentido se alguma vez tivesse perdido um deles."
in Cemitério de Pianos, José Luís Peixoto
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